Ditadura militar: moradora de Mogi relembra momentos de angústia que passou dentro do DOI-Codi, na capital

Ditadura militar: moradora de Mogi relembra momentos de angústia que passou dentro do DOI-Codi, na capital

O relato da professora Ivone Marques aconteceu há 54 anos. Cinco décadas não foram suficientes para que ela conseguisse esquecer um detalhe sequer. “O meu companheiro foi preso. Deram um tiro nele que raspou e rasgou a calça. Aí a polícia pulou em cima. Na verdade, ele tinha sido entregue por um rapaz preso antes que, no meio da tortura, soltou que ia ter um ponto de encontro com ele naquele dia, naquele lugar”. A professora relata que foi atrás dos policiais perguntando “onde vão levar?”, “o que vão fazer?”, e acabaram pegando ela também. “Eles o torturaram barbaramente. Quando eu fui pra sala, vi foi um bando de gente sendo torturada, ele no meio. Foi a coisa mais chocante que eu já tinha visto em toda a minha vida”. “Eles [guardas] me trouxeram ele de pé, torturado. Ele estava com a cabeça imensa, tinha dobrado de tamanho, com um monte de rasgos na testa. Não estava ouvindo direito e estava sangrando. Aí eles disseram ‘é isso que vai acontecer com você também'”. Por fim, após súplicas do rapaz que era o companheiro dela na época, a professora conta que foi liberada. A segunda detenção dela aconteceu alguns anos depois, quando Ivone já estava com o atual marido. Ela tinha acabado de casar e estava grávida do primeiro filho. A denúncia de que ela teria ajudado na fuga de uma pessoa investigada foi o que levou a professora, mais uma vez, para o DOI-Codi. Dessa vez ela não só viu, como sentiu a tortura na pele. “Eu estava dentro da escola com uma reunião de professores. A polícia entrou e me prendeu na frente de todos os professores. Todos ficaram assustadíssimos. Dessa vez eu fui presa por minha própria causa. Me levaram pro DOI-Codi. Eu já estava com a barriga grandinha. Lá, os policiais me jogaram contra a parede, me sufocaram. Bom, para dizer o mínimo, tentaram me estuprar grávida. Eu fiquei lá sob esse interrogatório nojento durante a noite inteirinha e o outro dia”. “Eles me machucaram de uma forma que os problemas de coluna que eu tenho vieram de lá. Imagina pegar uma mulher grávida, jogar ela contra a parede e ela cair no chão. O que é isso? Eles diziam ‘agora, a gente vai te levar para o pau de arara’, ‘a gente vai sujar esse filho que você tem na barriga’. Os interrogadores estavam alcoolizados! Aí prenderam um casal que tinha chegado de Cuba, os guardas foram torturar o casal e me esqueceram”. A perseguição continuou durante a gestação. Na reta final da gravidez, aos oito meses, Ivone foi levada – mais uma vez – para ser interrogada. Assim como na primeira experiência, não apanhou, mas a tortura psicológica sofrida naquele novo interrogatório trouxe consequências graves e imediatas. “‘Senhores, desculpem, mas nós temos a necessidade de averiguar tudo. Quanto à senhora, vá para casa e tenha um bom parto’. Foram essas as palavras que o capitão me falou aquele dia. Eu fui pra casa. Cheguei na casa do meu pai, fui subir as escadas para ir para o meu quarto, subi o primeiro, o segundo degrau e comecei a ver umas estrelinhas, assim, do lado dos olhos. Comecei a ver uma vertigem, alguma coisa ruim. Eu voltei pra trás, peguei o telefone, liguei pra minha irmã e falei ‘Elsa, eu não estou me sentindo…’, e fui pro chão”. A professora conta que o médico tirou a pressão, viu o estado em que ela estava e disse para a irmã dela: “volta para casa, chama seu pai, sua mãe e manda chamar o marido dela”. A irmã perguntou se daria para salvar o bebê, entretanto, o médico respondeu “a senhora volta pra casa e vai rezar pra salvar a sua irmã, porque quem estava correndo perigo de vida é ela agora”. “Meu bebê nasceu. Ele custou pra dar o primeiro chorinho, mas aconteceu. Levaram o menino pro berçário. Essa pré-eclâmpsia quase acabou com a minha vida. O meu filho não conseguia respirar. Hoje tem surfactante pulmonar, que você dá para o bebê e, imediatamente, infla o pulmão da criança. Para o meu neném não existia isso ainda. No terceiro dia ele faleceu”, lamenta. Um dos locais usados para a tortura era a sede do Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na capital — Foto: Reprodução/TV Diário Resgate A história da mogiana é uma das 7 mil pessoas que foram detidas e torturadas no prédio do DOI-Codi. O espaço funcionou entre 1969 e 1983. Um período sombrio e obscuro que até hoje guarda um passado praticamente lacrado. Um trabalho para tentar materializar o que aconteceu lá dentro foi realizado agora em agosto por um grupo de pesquisadores ligados a cinco universidades públicas. Arqueólogos passaram treze dias fazendo escavações e procurando por objetos e até material genético para identificar vítimas torturadas e mortas no local. “Tem um buraco no chão, que funcionava como latrina, e ele pode ter restos como arcada dentária, sangue, pedaços de dedo, pedaços do corpo. Então você vai tentar resgatar o que estava naquele ambiente para poder formar um conjunto. Já quanto a questão da busca do DNA para saber quem é quem ainda demora um pouco porque muitas dessas pessoas, os pais ou irmãos já faleceram. Então precisa ser uma busca pela geração atual”, explica a professora e historiadora Ana Maria Sandim. Para a historiadora mogiana, um processo importante para explicar o que ainda muitos tentam negar que aconteceu. “Às vezes as pessoas ficavam amarradas em uma sala por 24h, 23h ou até 72h, sem conhecimento nenhum sobre onde estavam e só ouviam aquilo que era dito no interrogatório. Então quando ela voltava para a sua cela, não sabia que dia era e estava totalmente desnorteada”. Para quem viveu tudo isso, uma ação tardia mas necessária. e que por parte do estado precisa ter desdobramentos. “É uma ação tardia, mas tem que acontecer. Do ponto de vista jurídico, eles eram filhos de alguém. As pessoas que ainda procuram têm o direito de saber e dar a sepultura honesta para esses mortos. Eu gostaria de saber se algum dos interrogadores – e deve existir – ainda está vivo. Se estiver vivo, ele tem que pagar por isso”, conclui a professora Ivone Marques. Assista a mais notícias sobre o Alto Tietê

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