Pessoas com obesidade que estão em dieta para fazer cirurgia bariátrica e pacientes que já passaram pelo procedimento apresentam piora da saúde bucal, com aumento de cáries e doenças periodontais meses após serem submetidos à cirurgia. A constatação é de um estudo realizado por pesquisadores da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e publicado no Journal of Oral Rehabilitation e na revista Clinical Oral Investigations. • Clique aqui e receba as notícias do R7 no seu WhatsApp • Compartilhe esta notícia pelo WhatsApp • Compartilhe esta notícia pelo Telegram Para os pesquisadores, os achados reforçam a necessidade da inclusão do profissional de odontologia na equipe multidisciplinar que vai acompanhar o paciente antes e após o procedimento cirúrgico – hoje, essa equipe normalmente é composta pelo médico cirurgião, endocrinologista, nutricionista e psicólogo. A ideia de pesquisar a saúde bucal dos pacientes com obesidade e submetidos à cirurgia bariátrica partiu da cirurgiã dentista Paula Midori Castelo, que também é professora associada do Departamento de Ciências Farmacêuticas da Unifesp. Ela se formou em odontologia na Unicamp, no campus de Piracicaba e, por isso, fez uma parceria com a Clínica Bariátrica de Piracicaba – um centro de referência no interior, que faz muitas cirurgias pelo SUS (Sistema Único de Saúde). “Estudo questões da fisiologia oral há algum tempo: salivação, mastigação, sucção e deglutição e como isso se relaciona tanto com a saúde bucal quanto sistêmica. A saliva, além de ajudar no processo de mastigação, na percepção de sabor, na formação do bolo alimentar, também serve como fonte de marcadores de doenças e processos inflamatórios. Surgiu daí a ideia de fazer a parceria com a clínica e a vontade de entender como se comportavam esses marcadores salivares nas pessoas com obesidade e submetidas à cirurgia”, explicou a pesquisadora. Segundo Castelo, alguns estudos já indicavam efeitos e impactos da cirurgia bariátrica sobre a saúde da boca, com aumento de cáries e da doença periodontal, mas as causas ainda não estão totalmente elucidadas. “Muitos pacientes relatam que os dentes ‘ficaram mais moles’ e acreditam ser por causa de falta de vitamina, por falta de cálcio, o que não é bem verdade. Decidi entender o ambiente bucal desses pacientes e quais eram os fatores que de fato levam a essas perdas de dentes e aumento de cáries”, disse. Para isso, Castelo desenhou um estudo controlado com 100 pacientes: um grupo que tinha obesidade mórbida foi submetido a um programa dietético preparatório para a cirurgia, e outro que já havia passado pela dieta e estava pronto para fazer a cirurgia bariátrica. Os dois grupos foram avaliados simultaneamente e em três momentos: antes de começar a dieta ou a cirurgia, três meses depois, e seis meses depois da dieta ou da cirurgia bariátrica novamente. Os pesquisadores ofereceram as instruções de higiene bucal padrão – escovação dos dentes três vezes ao dia, uso de fio dental. Além disso, dois dentistas avaliaram a boca dos participantes para verificar a saúde dos dentes antes do início da pesquisa (quantos estavam cariados e quantos estavam obturados) e coletaram amostras de saliva e de células da mucosa bucal. Essas avaliações foram repetidas em três momentos. As amostras de saliva foram enviadas para avaliação microbiológica e sequenciamento genético em um instituto em Hong Kong para quantificar as espécies e gêneros de microrganismos mais prevalentes, além da análise da diversidade bacteriana. Marcadores inflamatórios em saliva também foram analisados, e os pesquisadores monitoraram a perda de peso dos pacientes, o tipo de alimentação no período do estudo e a saúde dentária e periodontal. Apesar das orientações básicas sobre higiene da boca, os pesquisadores encontraram uma piora da saúde bucal dos participantes, com aumento no número de cáries e de casos de periodontite em ambos os grupos, mas especialmente naquele submetido à cirurgia bariátrica: 27% dos participantes do grupo dieta e 34% dos participantes do grupo submetido à cirurgia tiveram aumento no índice que mede o número de dentes cariados e obturados, num espaço de tempo de seis meses. Os pesquisadores constataram também que não houve alteração em termos de fluxo salivar, mas houve uma piora na capacidade de tamponamento da saliva – mecanismo essencial para garantir a saúde dos dentes. “Toda vez que o indivíduo come, seja um alimento ácido ou não, o pH da boca naturalmente acidifica porque há açúcares diversos em nossa alimentação. Isso faz o pH da nossa boca cair. A saliva é responsável por realizar o tamponamento, ou seja, eleva o pH novamente para retomar o equilíbrio. Esse é um mecanismo natural de proteção do esmalte dentário, para que ele não se desmineralize”, explicou a pesquisadora. Segundo Castelo, o estudo observou que essa capacidade de tamponamento da saliva fica prejudicada nos pacientes submetidos à cirurgia bariátrica, o que ajuda a explicar o aumento no número de dentes cariados. “Seis meses é um tempo muito curto para esse aumento de dentes cariados em ambos os grupos. A saúde periodontal também piorou durante o acompanhamento do grupo cirurgia e depois voltou aos patamares iniciais, mas não melhorou”, destacou. A pesquisadora explicou que esperava uma melhora na função periodontal dos pacientes após eles serem submetidos à cirurgia bariátrica, uma vez que a doença periodontal é uma doença inflamatória, assim como a obesidade. “Imaginávamos que tratando a obesidade, estaríamos tratando também a periodontite, mas ela não melhorou”, disse. Segundo a cirurgiã-dentista Nidia Castro dos Santos, doutora em periodontia e professora do curso de Odontologia da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, existe uma associação entre obesidade e doenças periodontais. Assim, um adulto que foi obeso em algum momento tem mais chances de ter doenças na gengiva porque a obesidade leva a uma inflamação local e sistêmica que também atinge os tecidos periodontais. “Um paciente que passou por uma cirurgia bariátrica é um paciente que passou em algum momento da vida por esse processo de inflamação sistêmica. E é importante, como vimos nesse estudo, continuar monitorando a saúde bucal desse paciente. O ideal seria a criação de protocolos para examinar a saúde bucal desse paciente para poder estabelecer medidas preventivas antes da cirurgia e durante o pós-cirúrgico porque essas alterações gastrointestinais vão levar a alterações bucais importantes”, afirmou. Segundo a pesquisadora Castelo, o estudo avaliou hipóteses e encontrou fatores que podem ajudar a explicar, ao menos em parte, esta piora da saúde bucal pós-cirurgia. Entre elas, estão o aumento no número de refeições (já que ambos os grupos passaram a comer mais vezes durante o dia, mas em porções menores) e a falta de higienização adequada. “Os pacientes passam a comer mais vezes ao dia e não escovam os dentes em todas as refeições. E toda vez que comemos algo, o pH da boca cai e provoca a desmineralização do esmalte. Sem o tamponamento adequado, o dente fica mais propenso a desenvolver cáries”, sugere. Outro fator importante que ajudaria a explicar a piora da saúde bucal em tão pouco tempo, especialmente para o grupo submetido à cirurgia, é que essas pessoas precisam fazer uma dieta líquida, pastosa e semi-sólida no pós-operatório. “Essa dieta líquida e semi-sólida é bastante ruim para a saúde bucal, porque o paciente não mastiga o alimento e não estimula a salivação, favorecendo a adesão de alimento ao esmalte do dente. Quando mastigamos fibras, frutas, verduras, melhoramos a autolimpeza da boca”, disse. Alterações importantes da microbiota da boca observadas no estudo, provavelmente em decorrência da alteração da dieta, também interferem na saúde bucal como um todo. Segundo Santos, a microbiota bucal é tão importante quanto intestinal para a saúde sistêmica da pessoa. “A cavidade bucal tem a segunda maior e mais diversa microbiota do corpo humano, com uma complexa ecologia. Temos cerca de 800 espécies bacterianas que convivem na nossa boca, além de fungos e vírus. E alterações no equilíbrio da microbiota bucal estão relacionadas a várias doenças, não somente bucais, mas também sistêmicas, como doenças cardiovasculares, diabetes e câncer”, afirmou a professora. A próxima etapa do trabalho da Unifesp será testar medidas preventivas e terapêuticas de controle da cárie para esses pacientes. “Como não existem diretrizes de saúde bucal a serem seguidas durante o tratamento da obesidade, precisamos pensar em alternativas de prevenção, já que as medidas padrão de controle de saúde bucal (escovação e uso de fio dental) não são capazes de mitigar os efeitos do tratamento para a obesidade”, afirmou Castelo. A cavidade bucal diz muito sobre a saúde do corpo. De fato, o dentista é o profissional que vai olhar para a cavidade bucal do paciente para prevenir e tratar essas condições. O acompanhamento se mostra necessário e o estudo reforça a importância do profissional de odontologia nessa equipe multidisciplinar. Ele também é essencial para o cuidado e o controle desse paciente”, finalizou Santos.