“Os mecanismos de racialização construídos ao longo de quase quatro séculos de escravização, com a desumanização e subalternização das pessoas negras, foram perpetuados na forma de práticas sociais que perduram até os dias atuais, mesmo depois de a escravidão ter sido proscrita, afirmou. Segundo o advogado, uma certa “tradição odiosa” de ver tudo que se refere à população negra como menores, piores e irrelevantes garante a manutenção da discriminação e do preconceito. Além disso, o processo de objetificação dos corpos negros, construído desde o período de escravização, ainda se encontra na sociedade. “Muita gente ainda vincula os corpos negros a uma maior força, daí, por exemplo, a violência obstétrica contra mulheres negras em trabalho de parto, frequentemente sujeitas a menos cuidados; ou a uma maior capacidade e apetite sexual, daí a permanência dos estereótipos sexualizados de mulheres negras e homens negros; ou a uma menor capacidade intelectual, daí a permanência de uma certa ideia de que há menos negros em situação de privilégio acadêmico ou financeiro porque eles são menos capazes”, enfatizou Lopes. Papel do estado e o racismo Ainda conforme Geovane, o Estado Brasileiro produziu políticas públicas que impediram a população negra de estudar, de conquistar propriedade imóvel, acessar espaços e realizar certos tipos de trabalho. Exemplo disso é a criação de privilégios para brancos europeus se mudarem para o Brasil, subsidiando a viagem e a compra de terras com o objetivo de branquear a população. “Só muito recentemente foram reconhecidos direitos trabalhistas para os empregados domésticos, por exemplo. Tudo isso criou uma cultura de desumanização e discriminação da população negra”, disse. Todos devem ser antirracistas “Estamos caminhando para superar esse racismo, chamado de racismo estrutural, mas ainda falta muito e é dever de todos lutar contra essa prática enraizada”. O combate ao racismo, que é crime, não deve ser feito só pela população negra, mas principalmente pela população branca, cujos antepassados criaram o racismo e agora se beneficiam dos reflexos dessas práticas, tendo sempre menos obstáculos para conseguir realizar seus projetos de vida. “A branquitude precisa compreender isso, mas é sempre difícil abrir mão de privilégios e, por isso, há sempre muita resistência nos não negros em compreender essas questões e engrossar as fileiras de luta contra o racismo”. Racismo e injúria racial: quais as diferenças entre os crimes Racismo, juridicamente falando, é o nome dado a um conjunto de crimes motivados por preconceito de raça ou de cor, definidos na Lei 7.716/89. A lei, promulgada no ano seguinte à Constituição de 1988, concretiza o texto constitucional que estabelece expressamente que o combate ao racismo é um dos princípios que rege o Brasil nas relações internacionais e que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível. A maioria dos atos definidos como racismo está relacionada a práticas que impedem pessoas de acessarem espaços e fruírem de bens, serviços e oportunidades, como: impedir de entrar e permanecer em algum lugar;negar-se a prestar serviço oferecido à população em geral; impedir o acesso a emprego;impedir a realização de concurso público etc. Já a injúria racial está relacionada a atos de ofensa pessoal também baseados em preconceito de raça, cor ou etnia. O crime foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro em 1997, por uma modificação do Código Penal. Comete injúria racial quem profere palavras ou prática atos contra negros e negras, relacionados a essa condição, que coloque a vítima em situação de desumanização. Alguns exemplos são: palavrões;comparações com animais;piadas relacionadas a condição de escravizado;expressões que maculem a honra e a autoestima do indivíduo. Desde janeiro de 2023, com a entrada em vigor da Lei 14.532/23, que transfere o crime de injúria racial para a Lei de combate ao racismo, a injúria racial passou a ser uma modalidade de crime de racismo e passou a ser imprescritível e inafiançável, sujeitando o autor do fato a penas de reclusão. A lei ainda registrou que o racismo recreativo também configura injúria racial, estabelecendo que não se pode justificar ofensas de cunho racial com o argumento de que era apenas uma brincadeira ou uma piada. E, ainda, estabeleceu que ofender religiões de matriz africana ou perseguir sem membros e macular os locais de culto também constitui racismo. “Isso foi um avanço, porque agora não só o impedimento de acesso ou fruição a bens, direitos e serviços era punido, mas também a ofensa à honra e à autoestima das pessoas racializadas”, disse o especialista. Qual o papel do judiciário no combate aos crimes? O judiciário tem o papel institucional de combater qualquer crime, garantindo a punição dos culpados de forma a produzir uma reparação social e para a vítima, dentro das possibilidades de cada caso, e a certeza na sociedade de não se deve cometer crimes porque haverá sanção. Contudo, no caso específico dos crimes motivados por preconceito racial, o especialista alerta que as estatísticas dão conta de que a maioria dos processos termina com a absolvição do autor do fato. “É claro que nem todo fato levado ao judiciário vai gerar uma punição, por diversos motivos, mas quando nós nos deparamos com uma esmagadora maioria de absolvições ou de extinções de processos relacionados a racismo, é possível inferir que há uma tendência a minimizar a prática de atos racistas, descaracterizando essa característica”, ressaltou o presidente da comissão. Para Geovane, uma primeira saída importante para mudar esse quadro, além do necessário letramento racial dos servidores público do sistema de Justiça, é a ampliação de negros e negras nos lugares de poder: mais juízes(as), promotores(as), assessores(as), delegados(as) e servidores(as) negros e negras, conscientes do racismo estrutural que forma nossa sociedade, que possam garantir uma análise dos casos de forma menos enviesada e protetora dos privilégios da branquitude. Juiz de fora foi a principal cidade escravista de Minas Gerais Devido à forte tradição cafeeira baseado no sistema de “plantation”, o que implicava na utilização em massa de negros escravizados, Juiz de Fora se tornou a principal cidade escravista de Minas Gerais na metade do século XIX. O Censo de 1872 indicou que 2/3 da população juiz-forana era formada por escravizados. Além das lavouras, o trabalho dos africanos e dos descendentes também construiu a base para a industrialização da cidade. “Apesar disso (ou mesmo em razão disso), há um apagamento dessa história, que se reflete em poucas homenagens, poucos nomes de ruas e praças, poucos eventos de resgate das tradições negras da cidade, ao mesmo tempo que há uma exaltação de famílias escravocratas, demonstrando o profundo racismo arraigado na formação da sociedade juiz-forana”. Contudo, segundo o Laboratório de História Oral e Imagem da UFJF, os esforços dos movimentos sociais, somados a recentes iniciativas do Poder Público produzem uma mudança nessa equação e conseguido resgatar essa história tão importante da formação da cidade. VÍDEOS: veja tudo sobre a Zona da Mata e Campos das Vertentes