Conflito na saúde: médicos e farmacêuticos nos Estados Unidos exigem mudanças

Conflito na saúde: médicos e farmacêuticos nos Estados Unidos exigem mudanças

À primeira vista, John Wust, ginecologista e obstetra experiente da Louisiana, não aparenta ser um ativista sindical. Adepto da gravata-borboleta, dedicou os primeiros 15 anos de sua carreira à gestão da própria clínica, em conjunto com alguns colegas. Mesmo tendo assumido, em 2009, um cargo no Allina Health, amplo sistema de saúde sem fins lucrativos sediado em Minnesota, ele não se considerava o tipo de profissional que tiraria proveito das negociações coletivas. Mas, nos meses que antecederam março, isso mudou, quando o grupo ao qual faz parte, que conta com mais de cem médicos de um hospital do Allina, próximo a Minneapolis, votou a favor da sindicalização. Wust, que conversou com seus colegas sobre os potenciais benefícios de um sindicato, explicou que os médicos estavam enfrentando dificuldades para aliviar sua carga de trabalho insustentável, porque tinham menos influência do que nunca no hospital: “Do jeito que as coisas estavam, não vi outra solução legal possível”. • Clique aqui e receba as notícias do R7 no seu WhatsApp • Compartilhe esta notícia no WhatsApp • Compartilhe esta notícia no Telegram • Assine a newsletter R7 em Ponto Quando optaram por se unir à sua categoria, estavam entre os grupos mais numerosos de médicos do setor privado a tomar a iniciativa. Mas, até outubro, o número passou para cerca de 400 clínicos gerais, todos funcionários do Allina. Segundo o Conselho de Médicos do Sindicato Internacional de Trabalhadores de Serviços, que representa esses profissionais, os médicos de dezenas de clínicas em todos os Estados Unidos têm considerado, nos últimos anos, a possibilidade de se organizar e atuar na sua entidade sindical. Mas eles não são os únicos profissionais de saúde que estão se sindicalizando ou protestando em quantidade cada vez maior. Outros trabalhadores da área, muitos deles enfermeiros, fizeram oito grandes greves no ano passado — o maior número em uma década — e estão a caminho de igualar ou superar esse marco neste ano. Neste outono setentrional, dezenas de farmacêuticos não sindicalizados que trabalham em farmácias das redes CVS e Walgreens disseram estar doentes ou se ausentaram do trabalho para protestar contra a falta de funcionários, às vezes durante um dia inteiro ou mais. A motivação para essas ações parece simples. Médicos, enfermeiros e farmacêuticos afirmaram que sua demanda de trabalho aumentou à medida que a equipe diminuiu, levando ao esgotamento e à ansiedade, por receio de colocar os pacientes em risco. Muitos relataram que foram sobrecarregados no início da pandemia e que, mesmo passado esse período, as coisas não retornaram ao que eram antes. Mas, em cada caso, o problema é ainda maior: enquanto as empresas cresciam e se tornavam mais complexas e burocráticas, esses trabalhadores enfrentavam cada vez mais restrições em relação à sua capacidade de tomar decisões profissionais independentes. “As pessoas se sentem sobrecarregadas. É um fato. As estruturas corporativas na área da saúde não são más, mas não evoluíram o suficiente para entender como interagir com os trabalhadores”, disse John August, especialista em relações trabalhistas na área de saúde do Instituto Scheinman, da Universidade Cornell. O Allina declarou que tinha reduzido a carga de trabalho dos médicos e que seguia colaborando com os profissionais de saúde para resolver os problemas remanescentes. A CVS garantiu que, em resposta às solicitações dos funcionários, estava fazendo “investimentos específicos” em suas farmácias para melhorar a equipe, e a Walgreens afirmou que tinha investido mais de US$ 400 milhões em dois anos para contratar e manter funcionários, e que estava comprometida em garantir que a equipe tenha o apoio necessário. Muitos médicos e farmacêuticos acreditaram durante anos que estavam numa posição em que não eram diretamente afetados pela gestão relacionada à estrutura tradicional das empresas, que normalmente afeta os funcionários de outras áreas, mas que agora se sentem sufocados pela hierarquia. O resultado é uma consciência maior, que antes nem todos tinham, de questões trabalhistas, em combinação com a sensação de ser subordinados e de estar em constante conflito com seus superiores. “No fim, percebi que todos somos trabalhadores, mesmo com a percepção elitista que muita gente tem de nós. Somos vistos como peças de uma engrenagem. Não importa se você é médico ou operário — as grandes empresas tratam todo mundo exatamente da mesma forma”, disse a doutora Alia Sharif, colega de Wust no Allina, que é muito engajada na campanha sindical. “Todos éramos parceiros”, até que as métricas de desempenho chegaram Os detalhes variam de acordo com o campo da saúde, mas as tendências são semelhantes: os profissionais da área afirmam que, antes, tinham a liberdade e os recursos necessários para executar seu trabalho adequadamente, mas que isso foi sucedido por um período de decadência, no qual passaram a ser excessivamente controlados. Ed Smith, que foi estagiário e farmacêutico em uma CVS em Massachusetts, no fim dos anos 1990, sentia que as lojas sempre tinham funcionários suficientes e que os farmacêuticos tinham tempo para construir uma relação com os pacientes. Em meados de 2004, tornou-se gerente de distrito na região de Boston, onde supervisionava cerca de 20 estabelecimentos da empresa. Ele contou que os executivos da CVS estavam atentos às opiniões dos farmacêuticos: aumentavam o salário dos técnicos quando o quadro de funcionários estava reduzido e mantinham os programas de computador atualizados, a fim de facilitar o trabalho. “Cada decisão se baseava em algo que dissemos que era necessário”, lembrou. Com nostalgia, ele também se recordou dos tempos em que trabalhava em um consultório independente, com cerca de 25 médicos. “Todos éramos parceiros. Era uma espécie de democracia no trabalho. Todo mundo tinha voz e voto, e todas as preocupações eram ouvidas.” Com o tempo, porém, enquanto as empresas se consolidavam e surgiam outras cada vez maiores, os trabalhadores passavam a ter cada vez menos influência. À medida que os chamados gerentes de benefícios farmacêuticos — que negociam descontos com farmácias em nome de seguradoras e empresas — adquiriam concorrentes, gigantes do varejo, como a Walgreens e a CVS, compravam outras empresas para não perder poder de mercado. Mas muitas delas fecharam, levando mais clientes a frequentar as que já existiam. Elas buscaram a redução de custos, especialmente os relacionados à mão de obra, enquanto os gerentes de benefícios controlavam ou limitavam os preços dos medicamentos. Em meados de 2015, por estar relutante em supervisionar colegas de trabalho em condições que considerava inadequadas, Smith deixou seu cargo de gerente de distrito e voltou a ser farmacêutico de linha de frente. “Eu não podia pedir que eles fizessem o que eu mesmo não daria conta”, comentou. A necessidade de limitar estritamente o número de funcionários que cada farmácia podia escalar estava entre suas maiores frustrações. “A cada semana que você ultrapassava o orçamento de mão de obra direta, recebia uma ligação do seu gerente de distrito — independentemente do volume de prescrições. Se seu orçamento para técnicos cobria 100 horas e você precisava de 110, recebia um telefonema. Não era muito dinheiro — talvez US$ 180 —, mas eles te ligavam.” Quando questionada sobre como os orçamentos de mão de obra eram aplicados, a CVS respondeu que os gerentes recebem “orientações” baseadas no volume esperado e em outros fatores, e que ajustes são feitos para garantir o número de funcionários adequado. Mas Smith e outros farmacêuticos da CVS e da Walgreens, atuais e antigos, disseram que a distribuição de horas para farmacêuticos e técnicos nas farmácias em que trabalhavam diminuiu em vários dos anos entre as décadas de 2010 e 2020. Os farmacêuticos também relataram que as métricas de desempenho ficaram cada vez mais rigorosas, incluindo a rapidez no atendimento ao telefone, a proporção de receitas atendidas para 90 dias, em vez de 30 ou 60 (receitas de longo prazo geram mais dinheiro antecipado), e as ligações para incentivar as pessoas a preencher ou retirar receitas. Durante anos, contanto que o lucro e a satisfação do cliente permanecessem altos, os farmacêuticos das duas redes conseguiam ignorar amplamente esses parâmetros. Mas, no primeiro semestre de 2010, as duas empresas passaram a dar mais importância a esses indicadores. Na Walgreens, muitos gerentes de farmácia começaram a se reportar diretamente a um supervisor de vendas do distrito, e não a um supervisor com formação em farmácia. “Coincidiu com uma maior pressão das métricas. Sem essa experiência, eles pressionavam a farmácia da mesma forma que pressionavam os funcionários de atendimento ao cliente”, afirmou Sarah Knolhoff, farmacêutica que trabalhou na Walgreens de 2009 a 2022. A CVS afirmou que as métricas eram necessárias para garantir a segurança e a eficiência para os pacientes, mas que nos últimos anos reduziu o número desses indicativos. No ano passado, a Walgreens anunciou que não usaria mais “parâmetros baseados em tarefas” nas revisões de desempenho da equipe farmacêutica, mas que os manteria para monitorar o desempenho de cada loja. “A empresa determina como você deve atender seu paciente” No caso de médicos e enfermeiros, a transição se efetuou de forma meio simultânea. Os consultórios médicos independentes perceberam que tinham perdido influência na negociação das taxas de reembolso com as seguradoras, e muitos profissionais se juntaram a sistemas de saúde maiores, que podiam usar seu tamanho para obter melhores acordos. Em 2010, a aprovação da Lei de Cuidados Acessíveis (ACA, na sigla em inglês), combinada com outros esforços da regulamentação federal, acabou recompensando essas empresas por seu tamanho ao vincular o reembolso a certos resultados de saúde, como a diminuição da reincidência, o que seria um indicativo de um bom atendimento e, consequentemente, representaria menos custos. A expansão ajudou os sistemas hospitalares a diversificar sua população de pacientes — assim como faz uma seguradora —, garantindo que o grupo de alto risco não fosse financeiramente insustentável. Os profissionais passaram a ser cada vez mais avaliados pelos administradores — e recebiam incentivos e requisitos — por parâmetros vinculados à saúde dos pacientes. Mas a mudança não agradou aos trabalhadores: “A empresa determina como você deve atender seu paciente. Você sabe que não é assim que ele deve ser tratado, mas não pode dizer nada porque tem medo de ser demitido”, disse a dra. Frances Quee, presidente do Conselho de Médicos, que representa cerca de 3 mil profissionais da área, sendo a maioria de hospitais públicos. No Allina, os clínicos gerais são incentivados a falar com os pacientes sobre suas doenças crônicas ou de alto risco, mesmo que essas estejam bem controladas e não sejam o foco da consulta. “É um uso adequado dos nossos 25 minutos juntos? Não, mas permite ao Allina obter mais dinheiro do Medicare”, observou Matt Hoffman, clínico geral de uma clínica do Allina, que se sindicalizou em outubro. Adam Higman, especialista em operações hospitalares na Press Ganey, empresa de análise de dados e consultoria no setor de saúde, afirmou que a consolidação e o aumento do uso de métricas surgiram como resposta à necessidade de reduzir os custos com cuidados de saúde nos Estados Unidos, que durante muito tempo representaram os índices mais altos per capita do mundo inteiro, garantindo que o gasto beneficie os pacientes. Ele apontou que os dados mostram que médicos e enfermeiros mais empáticos e comunicativos  — fatores que afetam a experiência dos pacientes — resultam em pacientes mais saudáveis, mas reconheceu que muitos sistemas de saúde geraram tensões com esses profissionais ao não os envolver no desenvolvimento e na implantação do sistema de métricas pelo qual são avaliados. “Os sistemas de saúde inteligentes e progressistas escutam os médicos, analisam sua experiência, o número de atendimentos, e criam espaços para discussão. Um dos fatores que contribuem para a sindicalização é a ausência disso.” ‘Eu não teria considerado a associação entre médicos e sindicatos’ A pandemia aumentou ainda mais essas tensões. À medida que foram lançadas as vacinas contra a Covid-19, os farmacêuticos passaram a reclamar da sobrecarga de trabalho a tal ponto que não conseguiam fazer uma pausa para ir ao banheiro, relatando que estavam constantemente preocupados em cometer erros que pudessem prejudicar os pacientes. (A CVS disse que, desde o ano passado, fecha todas as tardes a maioria das farmácias por meia hora para que os farmacêuticos tenham uma pausa regular. A Walgreens declarou que os “intervalos fixos para a alimentação dos farmacêuticos” começaram a ser implantados em todas as lojas em 2020.) Médicos e enfermeiros descobriram que sua caixa de entrada de e-mails, já saturada, de repente estava lotada, uma vez que os pacientes estavam assustados e pediam conselhos médicos urgentes. Os administradores tentaram acomodar mais pacientes em hospitais e clínicas que já estavam lotados. Segundo muitos trabalhadores, o ponto mais crítico veio depois do auge da pandemia, quando as condições não melhoraram. Apesar de os sistemas de saúde terem prometido aumentar o quadro de funcionários, muitos se depararam com déficits decorrentes da inflação e com a escassez de mão de obra especializada. Foi então que profissionais que nunca tinham considerado se juntar a um sindicato começaram a se organizar. Sharif disse que, quando começou a trabalhar no Allina, em 2009, “não teria considerado a associação entre médicos e sindicatos, e que esse conceito teria sido totalmente estranho”. No ano passado, ela entrou em contato com o Conselho de Médicos em busca de ajuda para sindicalizar seus colegas. Quee, presidente do sindicato, declarou que o número de médicos praticamente triplicou desde que o segundo grupo de médicos do Allina se sindicalizou no mês passado — e que, consequentemente, o Conselho de Médicos está contratando mais organizadores. (O Allina está contestando o resultado da votação sindical em seus hospitais, mas não em suas clínicas.) Até os farmacêuticos estão se mobilizando. “Há dois dias, fui contatada por farmacêuticos da Flórida. Nunca tínhamos trabalhado com esses profissionais”, relatou Quee. Smith, que há muito tempo não é mais gerente de distrito da CVS e que passou a ser farmacêutico de linha de frente, assumiu um papel adicional em setembro: organizador sindical. Depois que a CVS demitiu um gerente de distrito que se recusou a fechar algumas lojas nos fins de semana para contornar a falta de funcionários, ele ajudou a organizar uma série de licenças médicas e paralisações coordenadas na área de Kansas City, no Missouri, onde trabalhou para a empresa nos últimos anos. “Há anos venho pedindo, pedindo e pedindo melhorias. Agora não pedimos mais. Estamos exigindo”, pontuou Smith. O obstetra do Allina John Wust e seus colegas representam um dos maiores grupos de médicos do setor privado a optar pela sindicalização, decisão que levaram a cabo através do voto, em março deste ano.  “Somos considerados minoria. Médico ou operário, não importa, você é tratado exatamente da mesma forma pelas grandes corporações”, diz a dra. Alia Sharif. (Jenn Ackerman/The New York Times) c. 2023 The New York Times Company

Postagens relacionadas

Cannabis: o que dizem pacientes e pesquisadores sobre uso medicinal da planta

Madonna no Rio; FOTOS

Saia cedo para ver Madonna de perto: veja em MAPAS como chegar a Copacabana e sem perrengue