Especialistas em direito e em ciência política consultados pelo R7 divergem sobre a possibilidade de o acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia, debatido desde 1999, ser concluído nos próximos dois meses. O ministro das Relações Exteriores brasileiro, Mauro Vieira, afirmou na semana passada haver uma “janela de oportunidade” para concluir o acordo até meados de fevereiro de 2024. A expectativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) era terminar as negociações enquanto o Brasil fosse presidente do bloco sul-americano, ciclo que teve fim no início deste mês. Entre os principais obstáculos para a conclusão da parceria, estão exigências ambientais dos europeus e necessidade de maior presença de empresas brasileiras na Europa. “Não tem a menor possibilidade de que ele seja finalizado em dois meses, porque as nuances que tem que negociar ainda são muito grandes”, avalia o cientista político e presidente do Instituto Monitor da Democracia, Márcio Coimbra. Ele observa que os obstáculos à concretização da parceria têm diversas frentes, em especial, na área de agricultura. • Clique aqui e receba as notícias do R7 no seu WhatsApp • Compartilhe esta notícia pelo WhatsApp • Compartilhe esta notícia pelo Telegram • Assine a newsletter R7 em Ponto “A França deseja maior proteção para sua produção local, o que afetaria sobremaneira Brasil e Argentina. Mas uma negociação nesse nível teria que envolver todos os países. Não adianta negociar somente com um ou dois, tem que negociar com praticamente 30, e os 30 têm que aceitar os ajustes. Então, é impossível chegar a termo em dois meses”, diz o especialista. “Parece que, ao fim e ao cabo, o acordo não deve progredir”, continua Coimbra. “Até onde a gente viu, se há um país da União Europeia contra, no caso a França — e deve ter outros também que a gente não está sabendo, mas, especificamente, a França, que assumiu a frente de negociação —, dizendo que o acordo não vai sair, acho muito difícil que avance. Ainda mais em um curto espaço de tempo”, conclui. O advogado especialista em direito econômico e ambiental Alessandro Azzoni diverge do colega. “É possível [concluir até fevereiro]. Lula conseguiu apoio do chanceler alemão [Olaf Scholz] justamente para tentar aprovar, o presidente fala que há uma janela [para a aprovação]. De fato, se não for feito agora, depois vem a eleição do novo Parlamento Europeu e mudam todas as cabeças da Casa. O momento é agora”, avalia. O acordo do Mercosul com a União Europeia pode permitir a empresas brasileiras serem mais competitivas e terem mais espaço no mercado europeu. Além disso, a expectativa é que favoreça instrumentos de diálogo e cooperação política em diversos temas, como mudanças climáticas e segurança pública. Empresas brasileiras Uma das questões apresentadas pela União Europeia está relacionada às compras governamentais. O bloco quer que o Mercosul autorize as empresas da Europa a participar, em condição de igualdade, de licitações em países sul-americanos, e vice-versa. Essas compras envolvem a aquisição de bens, a execução de obras e a contratação de serviços. Na visão do governo brasileiro, a medida pode prejudicar a indústria nacional, uma vez que o Executivo adquire produtos de diversas áreas, como saúde e agricultura. Em uma eventual participação de países europeus nas licitações, o Brasil poderia ter a produção interna prejudicada ou não suficientemente estimulada. Alessandro Azzoni avalia como “absurda” a possibilidade de participação de empresas estrangeiras em licitações nacionais. “Há essas exigências colocadas pela União Europeia. Acho um absurdo as empresas europeias terem direito de participar de processos licitatórios, mas nós do Mercosul não teríamos [direito de participar das licitações governamentais europeias]”, critica. Em relação à agricultura, Azzoni destaca que a posição contrária ao acordo do presidente da França, Emmanuel Macron, desacelerou as negociações. “Macron deu uma emperrada nas conversas. A França é o maior produtor da Europa, praticamente. Ele quer proteger o agronegócio local, o principal fornecedor para a Europa. Com o acordo, teríamos as portas abertas para entrar [no mercado agrícola europeu] e, provavelmente, quebraríamos o mercado deles, cuja hegemonia hoje é da França”, completa o advogado. Márcio Coimbra avalia que as empresas brasileiras teriam vantagem sobre as firmas francesas no setor agrícola. “O livre-comércio é vantajoso para todos os lados, porque acaba levando no curto, médio e longo prazo a uma seleção natural e busca por excelência. Então, quem não está muito modernizado pode acabar quebrando ou terá de passar por processo de modernização” Para o especialista, o agronegócio do Brasil é “tecnológico” o suficiente para obter vantagem. “O agro brasileiro já é muito modernizado e enfrenta a competição global. O agro francês é muito dependente de subsídios do governo. Então, o agro brasileiro tem vantagem comparativa, e é por isso que há esse problema com a França”, observa. Meio ambiente Há entraves também nas questões ambientais. Os países da Europa querem a garantia de que a intensificação do comércio entre os blocos não resultará no aumento de destruição ambiental no Brasil e nas demais nações do Mercosul. Em contrapartida, o lado brasileiro é a favor de que não haja distinção na aplicação de eventuais sanções, ou seja, de que ambos os lados sejam penalizados da mesma forma em caso de descumprimento. “São as famosas exigências ambientais europeias”, analisa Alessandro Azzoni. “Nossa recuperação florestal é baixa, não vamos cumprir essas exigências como estão sendo colocadas. O ponto principal que está deixando esse acordo caro para nós é o dessas exigências ambientais. Podemos chegar ao desmatamento zero em 2030, mas não recuperaremos toda a área derrubada [como tem sido pedido pelos europeus].” Para Azzoni, a parceria com a União Europeia é importante, mas não deve passar por cima dos princípios brasileiros. “Se não continuarmos esse acordo, vamos ficar travados de exportações e com maior dependência da China. Ter essa abertura [com a Europa] é uma grande oportunidade, mas não podemos ceder a pressões”, completa. Mercosul e União Europeia Se concluído, o tratado vai formar uma das maiores áreas de livre-comércio do planeta, com quase 720 milhões de pessoas, cerca de 20% da economia global e 31% das exportações mundiais de bens. Se as normas do acordo entre o Mercosul e a União Europeia já valessem em 2022, cerca de R$ 13 bilhões em exportações brasileiras para o bloco teriam sido negociados sem o pagamento de imposto, segundo uma estimativa da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Com o tratado, em torno de 95% de todos os bens industriais teriam o imposto de importação para entrar no mercado europeu zerado em até dez anos, sendo que mais da metade desses produtos — quase 3.000 — terá o benefício imediato na entrada em vigor do acordo, diz a confederação. Entre 2002 e 2022, a participação da União Europeia nas vendas brasileiras caiu de 23% para 15%, enquanto a da China cresceu de 4% para 27%. Segundo a CNI, 22% das exportações brasileiras para a China em 2022 foram de bens da indústria de transformação. Esses produtos responderam por 49% de tudo o que o país exportou para o bloco europeu no ano passado.