A corrida nas camadas mais altas da atmosfera começou em Cabo Canaveral, na Flórida, em 17 de fevereiro de 2023, quando um foguete SpaceX Falcon 9 foi lançado. Nesse dia, Thomas Parent, piloto de pesquisa da Nasa, estava a bordo de um jato WB-57 quando o SpaceX passou próximo à sua asa direita. Ele ficou hipnotizado por alguns instantes antes de acelerar a aeronave e iniciar sua caçada. Por aproximadamente uma hora, Parent fez mergulhos dentro e fora da nuvem criada na esteira do foguete, enquanto Tony Casey, o operador dos sensores a bordo do jato, monitorava 17 instrumentos científicos. Os pesquisadores da agência espacial usariam os dados que o avião de Parent traria para provar que era possível capturar a pluma, ou seja, a fumaça do foguete. Esperavam, com isso, caracterizar os efeitos ambientais que um lançamento espacial produz. Nos últimos anos, o número de lançamentos de foguetes disparou. Empresas comerciais – especialmente a SpaceX, fundada por Elon Musk – e as agências governamentais colocaram milhares de satélites na órbita baixa da Terra. E isso é só o começo. Os satélites poderão, um dia, totalizar um milhão de unidades, demandando um número ainda maior de lançamentos espaciais que produzirão níveis crescentes de emissões de gases. A SpaceX se recusou a comentar a poluição causada por foguetes e satélites. Já representantes da Amazon e da Eutelsat OneWeb, duas outras empresas que trabalham na construção de megaconstelações de satélites (grupo de satélites artificiais que trabalham juntos como um sistema), afirmaram que estão comprometidas com operações sustentáveis. Entretanto, cientistas temem que mais lançamentos espalhem mais poluentes nas camadas imaculadas da atmosfera terrestre. E os órgãos reguladores de todo o mundo – que avaliam os riscos de lançamentos espaciais – ainda não estabeleceram regras relacionadas à poluição. Especialistas dizem que não pretendem limitar a expansão da economia espacial. Mas temem que a ciência caminhe mais lentamente do que essa nova corrida pelo espaço. O significado disso é que só poderemos compreender as consequências da poluição provocada pelos grandes foguetes e pelas naves espaciais quando for tarde demais. E não são apenas os gases expelidos pelos foguetes que preocupam: estudos demonstram que as camadas mais altas da atmosfera estão repletas de metais provenientes das naves espaciais que se desintegraram quando caíram de volta na Terra. Para Aaron Boley, astrônomo da Universidade da Colúmbia Britânica e codiretor do Outer Space Institute, “o sistema está mudando mais depressa do que podemos compreender. Nunca valorizamos de fato nossa capacidade de afetar o meio ambiente, mas fazemos isso continuamente”. Quando um foguete como o Falcon 9 decola, normalmente leva cerca de 90 segundos para atravessar a baixa atmosfera, ou troposfera, antes de atingir a atmosfera intermediária. Foi no topo da troposfera que Parent começou sua perseguição, voando tão alto quanto a atmosfera intermediária. Nesse ponto, a densidade do ar é muito baixa. Ele e o operador Casey tiveram de usar roupas pressurizadas, luvas pesadas e capacetes que os supriam com oxigênio. A atmosfera intermediária raramente viu tanta agitação. É muito difícil que aviões comerciais voem nessas alturas. Nem o clima terrestre nem a poluição do solo chegam lá em cima. É, portanto, calma, intocada e vazia – exceto por um foguete ocasional, que passará por ela durante três a quatro minutos a caminho do espaço. No momento em que um foguete entra em órbita, terá despejado nas camadas média e superior da atmosfera até dois terços de seus gases de escape, que, segundo os cientistas, caem e se acumulam na camada inferior da atmosfera média, a estratosfera. Esta abriga a camada de ozônio que nos protege da radiação prejudicial do sol e que é sensível: mesmo a menor mudança pode ter efeitos enormes sobre ela e sobre o mundo abaixo. Para dar uma ideia do problema, quando o Monte Pinatubo entrou em erupção, no centro das Filipinas, em 1991, expeliu dióxido de enxofre na estratosfera suficiente para desencadear um período de esfriamento plurianual. Esse gás criou aerossóis de sulfato que aqueceram a estratosfera e impediram que o calor atingisse a superfície da Terra. Alguns cientistas temem que os gases de escape cumulativos liberados por mais foguetes possam afetar o clima de maneira semelhante. Hoje, os gases de combustão dos foguetes são insignificantes em comparação com os emitidos pela aviação. Mas os cientistas estão preocupados com o fato de que mesmo pequenas adições à estratosfera provoquem um efeito muito maior. Martin Ross, cientista da Aerospace Corporation, organização de pesquisa financiada pelo governo federal dos Estados Unidos, sediada em Los Angeles, comparou a atmosfera da Terra a um barril de água lamacenta. Imagine que a sujeira e os detritos nesse barril se assentaram no fundo e deixaram a parte de cima relativamente clara. Se você adicionar mais sujeira ao fundo, ela passará despercebida. No entanto, se você adicionar a sujeira à água transparente que está no topo do barril, é provável que ela fique turva ou mesmo suja. A maneira exata como os foguetes afetarão esse topo relativamente claro, que chamamos de estratosfera, é ainda incerta. Os cientistas estão preocupados com o carbono negro, ou fuligem, liberado pelos atuais foguetes, que pode agir como uma erupção vulcânica contínua, criando uma alteração que tem potencial para esgotar a camada de ozônio e afetar a Terra no plano abaixo. Na década de 1990, quando o ônibus espacial da Nasa e outros foguetes foram lançados de forma constante a partir de solo norte-americano, vários estudos previram que as naves espaciais causariam danos locais à camada de ozônio. Um estudo chegou a prever uma perda de até cem por cento dela, provocando um pequeno buraco sobre o Cabo Canaveral, o local de lançamento, suficiente para permitir que uma maior quantidade de radiação ultravioleta do Sol atingisse o solo, aumentando, assim, o risco de câncer de pele, catarata e doenças causadas por baixa imunidade. Os estudos se basearam apenas em modelos e previsões, sem dados observacionais. Por isso, Ross e seus colegas recolheram dados de voos de investigação a grandes altitudes, que encontraram buracos de ozônio nos locais por onde passava a esteira dos voos espaciais. Mas notaram, posteriormente, que os buracos fecharam em pouco tempo. Não eram grandes o bastante para afetar o Cabo Canaveral, levando em consideração a frequência dos lançamentos da época, cerca de 25 por ano. Mas o mesmo pode não se repetir no futuro. Em 2023, a SpaceX sozinha lançou quase cem foguetes. A maioria dos voos se destinava a construir uma constelação de satélites, a Starlink. Em breve, a Amazon se juntará a ela. A empresa de Jeff Bezos está planejando lançamentos frequentes para montar a constelação de satélites do Projeto Kuiper. Outras empresas também buscam presença substancial na órbita da Terra. São satélites que vão oferecer uma série de benefícios, incluindo internet banda larga em quase todos os lugares. Infelizmente, quando essas empresas completarem suas constelações de até milhares de satélites, os lançamentos não terminarão. Muitos satélites têm vida útil de cinco a 15 anos, exigindo substituições. É o início de uma nova era. Segundo Tim Maclay, diretor de estratégia da ClearSpace, empresa suíça que tem foco na construção de operações espaciais sustentáveis, “estamos numa fase da indústria espacial semelhante à que estávamos há muitas décadas, em vários dos nossos ambientes terrestres. Vemos a perspectiva do desenvolvimento e vamos em direção a ela sem premeditar as consequências ambientais”. Os cientistas dão o alarme, mas deixam claro que não se consideram oponentes das empresas de foguetes ou das operadoras de satélites. “Não queremos parar a indústria espacial”, disse Karen Rosenlof, cientista climática do Laboratório de Ciências Químicas da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (Noaa, em inglês). Ela afirma que os satélites fornecem serviços incríveis às pessoas na Terra, mas se juntou a outros cientistas que pedem um conjunto de regulações que levem em consideração as implicações ambientais. Rosenlof argumenta que existem maneiras de reduzir os impactos da indústria espacial sem a interromper. Por exemplo, se os cientistas encontrarem um limite além do qual a indústria espacial começa a prejudicar o ambiente, fará todo o sentido limitar o número de lançamentos e de satélites. Alternativamente, os materiais ou combustíveis utilizados pela indústria espacial poderão ser adaptados para diminuir os impactos. Boley concorda: “Há muitas possibilidades que podem nos ajudar a proteger o meio ambiente e, ao mesmo tempo, dar acesso ao espaço. Só precisamos ter uma visão mais ampla.” Mas, como argumentam os cientistas, para fazer isso os operadores de satélites e as empresas de foguetes precisam de regulamentações. E, atualmente, poucas estão em vigor. Gavin Schmidt, diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa, que esteve envolvido num grupo de trabalho nesta investigação, argumenta: “O lançamento espacial fica numa zona cinzenta e escorre por entre as fendas de todas as autoridades reguladoras.” O Protocolo de Montreal, por exemplo, é um tratado que estabeleceu com sucesso limites para produtos químicos conhecidos por prejudicar a camada de ozônio. Mas não aborda as emissões de foguetes ou satélites. Nos Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental não é responsável pela análise de lançamentos de foguetes. A Comissão Federal de Comunicações (FCC, em inglês), que licencia grandes constelações de satélites, não considera os potenciais danos ao ambiente. (Em 2022, o Government Accountability Office – uma espécie de Tribunal de Contas – instou a FCC a fazer mudanças nessa política, mas elas ainda não foram efetuadas.) E a Administração Federal de Aviação, que avalia os impactos ambientais dos lançamentos de foguetes no solo, não executa essa função na atmosfera ou no espaço. Será que o futuro da estratosfera cairá nas mãos de Elon Musk, Jeff Bezos e de outros executivos de empresas espaciais privadas? Isso preocupa particularmente Boley, que afirma que a indústria espacial não quer diminuir o ritmo: “A menos que isso afete imediatamente seus resultados financeiros, eles simplesmente não estão interessados, e o impacto ambiental é um inconveniente.” Um porta-voz da OneWeb, que lançou mais de 600 satélites no espaço, disse que a empresa de telecomunicações está comprometida com a sustentabilidade no design de satélites, no planejamento para criação de constelações e na gestão de lançamentos. Katie Dowd, diretora sênior da OneWeb, acrescentou: “Trabalhamos em estreita colaboração com parceiros públicos e privados para minimizar o impacto ambiental de nossa frota de satélites.” Ainda assim, há planos de expandir sua constelação para algo como sete mil satélites em órbita da Terra. “Resta saber até que ponto faremos isso corretamente. Ao que parece, não somos uma espécie que toma medidas responsáveis de forma proativa com relação à gestão ambiental. Na maior parte das vezes, isso nos vem como um pensamento tardio”, observou Tim Maclay, da ClearSpace. c. 2023 The New York Times Company Qual a diferença entre astronauta, cosmonauta e taikonauta?
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