Uma das minhas funções como editor da LVM é a de analisar livros estrangeiros para uma possível publicação no Brasil. Confesso que é uma das minhas funções prediletas, a que me dá acesso a todo tipo de ideias correntes no mundo todo. Em agosto do ano passado, passando os olhos nos catálogos de lançamento na Amazon norte-americana, um livro específico chamou minha atenção, A heretic’s manifesto: essays on the unsayable, de Brendan O’Neill; eu já conhecia Brendan de outros textos, principalmente os publicados na Spiked — excelente revista conservadora inglesa, diga-se de passagem. Costumeiramente, levo algumas semanas para terminar os livros que avalio para a editora, pois leio muitos ao mesmo tempo — demanda, meus caros, demanda —, mas não foi o caso do livro de O’Neill. Lembro-me de tê-lo lido em pouco mais de duas horas. Trata-se de uma leitura “extremamente acessível e saborosa, sobre temáticas ácidas e controversas, onde o autor sustenta posições fundamentadas em argumentos convincentes e profundamente provocadores” (citação extraída de minha caderneta anotação após finalizar a leitura). O’Neill, sem exageros, concentra quase tudo que eu espero em um articulista conservador atualmente: profundidade, pesquisa e ironia; pensei, preciso trazer esse livro para o Brasil. Apresentei o título para o comitê editorial da LVM e, por pouco, o livro não foi aceito — devido a alguns tons extremamente provocadores do autor na obra —; como não sou mais um menino nesse campo da edição, antes de apresentar o livro à editora, encarreguei meu amigo igualmente polêmico e profundamente respeitado na LVM, Rodrigo Constantino, de ler a obra e, no dia da apresentação, dar seus sempre bons e convincentes argumentos no debate de apresentação. Deu certo. O livro então acaba de ser lançado no país, pela LVM, sob o título O manifesto herege: aquilo que não pode ser dito, a obra já conta com a ótima matéria de Bruno Lemes a Oeste intitulada Um ‘herege’ contra a tirania politicamente correta — na qual também tive a honra de participar como entrevistado. O livro é dividido em dez capítulos gerais, cada um tratando de uma das muitas histerias do identitarismo progressista contemporâneo. O texto é diferente de tudo o que já li sobre o tema — acredite, já li muita coisa a esse respeito —, pois, ali há provocação requintada e análise profunda, não meramente da filosofia do identitarismo, mas das hipocrisias e alucinações ideológicas do progressismo militante, constatadas a olhos nus, nos jornais e debates cotidianos. Por exemplo, logo no primeiro capítulo, intitulado “O pênis dela”, o autor mostra-nos como o jornalismo e os intelectuais se renderam abestalhadamente ao discurso identitário, ao ponto de repetirem a esmo “o pênis dela” ao se referirem a homens que se denominam mulheres transgêneros; quase que de uma hora para outra, começamos a aceitar que meninas podem ter próstatas; homens podem ter úteros; que marmanjos menstruam e mulheres têm pênis, numa espécie de frenesi ideológico digno das distopias mais assustadoras. Em suma, o que O’Neill nos mostra nesses dez capítulos refere-se a como o progressismo está conseguindo, por meio das universidades e mídias, controlar as massas valendo-se do manejo de discursos, imposições jurídicas e culturais. O diferencial dessa obra, porém, é que ela nos mostra tudo isso com um tom provocativo e com notas de rodapés abundantes, ou seja, se você é um progressista devoto que porventura se dignifica a ler esse livro, de duas umas: ou você abandona a irracionalidade do discurso identitário após, ou ficará a um passo de um AVC. Poucas coisas ficam fora de sua aguçada mira crítica, desde o pai do conservadorismo, Edmund Burke — crítica essa de O’Neill da qual eu discordo completamente, que fique registrado —, até o ativismo climático histérico e dogmático, quase tudo é submetido ao crivo da sua exposição crítica, corajosa e livre do medo de cancelamentos. Ao terminar o livro, fica claro como o mundo contemporâneo sucumbiu a religiões seculares extremistas: a irracionalidade com trajes de humanismo transgênero, ao multiculturalismo ébrio e ao psudocientificismo tuchado de ideologia; confesso que, ao terminar a leitura, me senti preso numa grande jaula política, cercado de cegos que guiam outros cegos sob cânticos de procissão, não religiosos, mas ideológicos. Mas, a cada capítulo, O’Neill não deixa que o tom pessimista seja a constante da obra, na verdade, os ensaios que compõem o livro têm uma espécie de chamado à reação do bom senso, à recusa individual e grupal dos dogmas progressistas, mesmo a custo de privilégios e benefícios sociais, isto é, contra a nova ortodoxia de absurdos, aos sensatos e racionais só resta a opção de proclamar corajosamente as heresias do bom senso e da verdade. Aliás, assim como sempre foram os manifestos iluministas de outrora, a ideia geral desse texto é acordar a população para uma realidade escondida, tirar do sono imbecil os indivíduos massificados por uma visão de mundo dogmática e sufocante. O livro tem a tradução de Paulo Polzonoff Jr., cronista do jornal Gazeta do Povo, escritor que tem um estilo provocador muito parecido com o de Brendan O’Neill e conhecimentos de tradução de longa data. Esse é um dos livros que, como editor, aposto para o longo prazo. Trata-se de um texto que se manterá atual, pois, num primeiro instante, não acredito em um recuo dessa alucinação ideológica a que assistimos, mas sim em seu real aprofundamento. Muitas decisões políticas e judiciais imporão aos indivíduos do Ocidente verdadeiros absurdos irracionais, e, cada vez que isso acontecer, mais necessário será O manifesto herege. Um dos textos mais lúcidos e provocativos lançados nos últimos anos com relação à cultura progressista, de longe um dos melhores e mais acessíveis do mercado editorial. Um livro que, daqui há pouco tempo, talvez tenhamos que esconder atrás do saco de arroz ou de baixo de algum armário quando a Polícia de Estado bater em nossas portas por qualquer crime arranjado. É o tipo de livro que os festivos atabalhoados do PT chamariam de “bolsonarista” ou “reacionário”, os perturbados do Psol de “transfóbico” ou “fascista”, o STF de “antidemocrático”, e nós, cidadãos comuns, de “necessário”.