Qualquer um que observar por dois minutos o comportamento das pessoas ao seu redor, seja em um transporte coletivo, no shopping ou até mesmo em um parque, invariavelmente perceberá que a maioria está com a cabeça curvada – a ponto de ter problemas de coluna – olhando para o celular e rolando a tela com o polegar. Essa espécie de alienação do mundo real não se trata de autismo, déficit de atenção, hiperatividade ou qualquer outro transtorno mental ou de desenvolvimento, mas, sim, o resultado do que parece ser um projeto de “zumbificação” dos seres humanos. E 2017, a 69ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), teve como tema “A Epidemia de Transtornos Mentais”, destacando que o Brasil, assim como outros países do Ocidente, está passando por uma epidemia de diagnósticos e não de transtornos mentais. Em entrevista ao portal da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a professora Maria Aparecida Affonso Moysés, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirmou que “o número de diagnósticos de transtorno mental é absurdo, e isso impede que muitas pessoas que realmente possuem o problema consigam ser tratadas na saúde pública”. Ela também destacou o que chamou de “fenômeno de medicalização da vida”, que significa transformar um problema coletivo em um problema pessoal. “Hoje em dia, o sofrimento e a tristeza, que são sentimentos comuns, normais e gerados pelo modo como a sociedade se organiza, estão sendo transformados em problemas médicos. Um bom exemplo da medicalização da vida pode ser visto nas escolas. Se tem dificuldade de aprendizado, a criança é rapidamente diagnosticada com TDAH. Muitas vezes, ela não tem nada, e os seus problemas de aprendizado estão relacionados à política educacional do país e à falta de qualidade de muitas escolas. Um problema coletivo (a educação brasileira) pode ser transformado em um problema pessoal (a criança é diagnosticada com um transtorno mental)”, declarou. Confusão entre causa e consequência podem gerar falsos diagnósticos No caso do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), por exemplo, os sintomas mais comuns são: falta de atenção, inquietação e impulsividade. Se compararmos aos efeitos que a exposição frequente a vídeos curtos causam, veremos uma inegável conexão. Tanto que o jornal americano The Wall Street Journal cunhou o termo “cérebro de TikTok” para descrever a falta de foco e aborrecimento constante detectado nas pessoas que rolam infinitamente o feed das redes sociais. Em seu livro “Nação Dopamina”, a professora de Psiquiatria e Medicina de Adicção na Escola de Medicina da Universidade Stanford, Dr.ᵃ Anna Lembke, afirma que o celular se tornou uma fonte de “dopamina digital”, proporcionando prazer imediato e fazendo com que seu uso seja cada vez mais viciante. “Quanto mais dopamina no sistema de recompensa do cérebro, mais aditiva é a experiência”, declara Lembke. Um estudo realizado em agosto de 2021 pela Universidade de Zhejiang, na China, analisou como o cérebro reage aos vídeos curtos que o algoritmo do TikTok sugere baseado nos gostos de cada usuário. Os cientistas descobriram que o algoritmo é capaz de selecionar conteúdos que afetam regiões cerebrais ligadas à empatia, ao autoconhecimento e à realização de tarefas, sempre com o objetivo de reforçar o comportamento de assistir aos vídeos, isto é, de manter o usuário por mais tempo na rede social. Com isso, é fácil concluir o motivo de o TikTok ser proibido na China, apesar de ter sido criado no país. Em entrevista ao Tilt, a psicóloga infantil Geovana Figueira Gomes, afirmou: “Como todo o conteúdo do TikTok é picotado para gerar recompensa imediata, não há construção de história e saga de personagem, em que se acompanha diversas etapas, como cansaço, frustração, animação. Isso é um problema e tanto para um cérebro ainda em desenvolvimento. No futuro, ninguém vai querer esperar”. O prejuízo cerebral de assistir vídeos curtos por horas e horas, todos os dias, é real. Porém, em vez de reduzir a exposição, há um crescimento exponencial na oferta desse tipo de conteúdo, pois outras redes vêm copiando o modelo, a exemplo dos reels do Instagram e dos Shorts, do YouTube. Nesses casos, a hiperatividade não é consequência de TDAH, a falta de empatia, de foco e de atenção não têm nada a ver com autismo ou qualquer outro transtorno, mas são causas do uso excessivo das redes sociais em busca de dopamina, o “hormônio da felicidade”, que jorra aos montes dos celulares e que, literalmente, estão na palma da mão de todos. Ou quase. Segundo um levantamento da McAffe, 96% das crianças e adolescentes no Brasil usam celulares. A “zumbificação” já é realidade e revertê-la se faz necessário Especialistas de diversas áreas da ciência afirmam que a exposição constante a vídeos curtos funciona como um treinamento para o cérebro, mas, nesse caso, com resultados prejudiciais. Ao mudar de cenário, de tema e de estímulo a cada minuto, o usuário está treinando seu cérebro a não prestar atenção em nada daquilo, pois em questão de segundos, o assunto já será outro. Um “doguinho” está dormindo na prateleira de uma loja. Ah, que fofo! Depois, surgem cenas de diversas pessoas escorregando, caindo ou derrubando café na própria roupa. Que hilário! Alguém dá uma opinião contrária. Alguém pode calar esse idiota? Um bebê aparece sentado no chão da cozinha cercado de farinha, chocolate em pó e o rosto coberto de manteiga. Ai, que aflição! Onde está a mãe dessa criança? Que absurdo fazer isso com o pobrezinho e ainda postar! Uma senhora de idade se atrapalha ao tentar entender as “trends” do momento. Nossa, tadinha! A celebridade expulsa de um reality show chora e se desculpa depois do papelão em rede nacional. Agora tá arrependida, né? Sei! O cérebro é bombardeado por conteúdos aleatórios e trabalha tentando processar pensamentos e emoções entrecortadas na tentativa de conectar informações sem qualquer coerência ou continuidade. É como se a vida passasse a ser como um sonho, onde nada faz sentido. Já a vida real passa a ser desinteressante e qualquer conversa que passe dos 90 segundos é “muito longa”. O cérebro começa a divagar como se buscasse o mecanismo de “rolar a tela”, mandando o interlocutor para outra dimensão e sintonizando com um “conteúdo” mais interessante e que traga a recompensa imediata à qual ele já se acostumou. Se seu filho não quer sair de casa, se tirar o celular de suas mãos por meia hora é um martírio e se ele não presta atenção em nada do que você fala, provavelmente ele não tem nenhuma patologia clínica – embora um médico apressado possa dizer, em questão de segundos, que ele tem. Quem diz isso é a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e tantas outras instituições que têm se debruçado sobre o assunto. É importante destacar que esse fenômeno não atinge apenas crianças e adolescentes. Embora seus cérebros estejam em formação e eles sejam as “presas” mais fáceis, os adultos também apresentam as mesmas características e não é preciso nenhum estudo – embora haja muitos – para confirmar isso. Como mencionado no início deste artigo, qualquer um que se dispuser a observar o comportamento das pessoas constatará que o processo de “zumbificação” dos seres humanos está caminhando a passos largos e que é preciso tomar providências imediatas para interromper e reverter esse processo o quanto antes. Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.